Orgulho-me de ter levado gente ao TNSC, que jamais sonharia em entrar num teatro de ópera, que veio de lá com muita vontade de voltar, exactamente por ter percebido que já não há essa barreira. Hoje as óperas têm todas legendagem… Se se fizer as pessoas sentir, quebra-se essa barreira protocolar da ópera ser quase impossível de alcançar, seja por défice cultural ou seja por qualquer outro motivo.
- Há muita gente a ir só por curiosidade?
Há muita gente até de Vila Franca que vai à ópera por curiosidade. Eu sinto-me honrado de ter levado muita gente de Vila Franca pela primeira vez à ópera. Apesar de Vila Franca ser uma cidade que se situa a relativamente poucos quilómetros de Lisboa, há uma grande distância cultural entre estas duas cidades e entre as pessoas e a ópera, que ainda é vista como uma coisa do passado. Há ainda uma visão muito influenciada por aquele período a preto e branco do Estado Novo, que a ópera é uma coisa de elite. Quando pergunto se querem vir ver um espectáculo, é vulgar dizerem-me: “Ai, tenho que comprar um vestido”, ou “tenho que ir comprar um fato”. Isso é um mito. Hoje em dia, toda a gente vai à ópera de calças de ganga. Nas sessões de matiné, já vi turistas a ir de calções e sandálias, sem chocar absolutamente ninguém.
Hoje, penso que a ópera é acessível a toda a gente. Democratizou-se. E a prova disso é a saída da ópera para a rua.
O problema das pessoas deste país poderá ser económico. Não é fácil levar uma família inteira à ópera. No entanto, orgulho-me de ter levado gente ao TNSC, que jamais sonharia em entrar num teatro de ópera, que veio de lá com muita vontade de voltar, exactamente por ter percebido que já não há essa barreira. Hoje as óperas têm todas legendagem… Se se fizer as pessoas sentir, quebra-se essa barreira protocolar da ópera ser quase impossível de alcançar, seja por défice cultural ou seja por qualquer outro motivo.
- Os espectáculos são todos interpretados na língua original?
Normalmente sim, porque a peça foi construída naquela língua e a prosódia está feita para aquela língua. Há uma tradição de tradução na Inglaterra e na Alemanha, por exemplo, mas que, a pouco e pouco, se tem perdido também por causa do desenvolvimento tecnológico que permite a legendagem. E também há ópera em português…
- Há muitas peças em português?
Há, mas creio que a maioria ainda estará fechada na Torre do Tombo à espera que alguém as vá buscar… Falta investimento a nível dos decisores políticos para a musicologia e para se poder ir buscar aquilo que, no fundo, é a nossa melhor música e que foi feita na nossa Era Dourada, entre 1500 e 1700. Haverá, com certeza, ainda muita documentação na Torre do Tombo para se fazer. Umas coisas já foram editadas, outras não. Mas isso tem de partir do decisor político, não só com investimento em investigação, mas também dizendo às estruturas que temos que usar também o nosso material.
No período Era Dourada, se éramos donos de meio mundo, tínhamos cá os melhores compositores ou poderíamos mandá-los estudar no estrangeiro para depois virem para cá. E depois há a da Era Moderna… Curiosamente no Estado Novo produzia-se mais ópera portuguesa do que hoje…
Há uma grande luta no meio operático para se desfazer o ditame do repertório. Porque é que se tem de ouvir sempre as mesmas óperas, sempre as mesmas histórias, só porque é do repertório? Só porque é o que está convencionado? Há muitas composições que podiam ser consagradas que ainda não estão convencionadas… Porquê?
Essa é uma discussão que se começa a ter hoje acerca do tal futuro da ópera… O que é que vamos continuar a fazer? Vamos fazer as mesmas óperas? Com os mesmos modelos? Em fatos e em cenários de época? E depois de já se ter visto dez vezes a mesma coisa? Quer-se continuar a fazer o mesmo?
Isto acaba por ser relativo a todas as áreas… Por exemplo, o cinema em Hollywood passa um bocado por isso, seja na animação, seja nos filmes de acção… Há uma reciclagem. Não se cria realmente algo de novo já há algum tempo. Isso é que é verdadeiramente assustador, não é a suposta falta de público.
A ópera tem que ter esta plasticidade de nos transportar para o futuro, se quer sobreviver e não ser só uma peça de museu. Normalmente as peças de museu ficam encerradas em casas para as pessoas irem lá ver e a ópera não é uma peça de museu, não deve ser uma peça de museu.
- O que houve de realmente inovador na ópera nos últimos tempos?
Por exemplo, fez-se um ciclo de O Anel dos Nibelungos de Wagner, no TNSC, dirigido por Graham Vick, que é um dos topos da encenação e do pensamento na ópera de hoje, que teve total liberdade de criação (menos na música que já está estabelecida) e fez uma versão das quatro óperas de Wagner que constituem O Anel dos Nibelungos que podiam ser vistas por uma criança de dez anos. E a composição de Wagner é muito densa e altamente pesada a nível de conteúdo filosófico, até para mim que estou no meio… Graham Vick apresentou-as de uma forma fresca e actual.
Claro que os puritanos odiaram, mas eu percebi o ponto de vista de se fazer uma coisa totalmente nova: Se é para fazer uma coisa com gente estática, com espadas de dois metros a tira-colo, armaduras, grandes cabeleiras e barbas enormes que está vinte minutos parada em palco a dissertar sobre filosofia, vais-se a Bayreuth, que é o teatro wagneriano par excellence, que eles fazem lá isso. Graham Vick , aqui em Portugal, fez uma coisa totalmente fresca, que lhe deu actualidade e fez com que as pessoas se identificassem com uma realidade muito mais próxima da delas, em vez de um género de reciclagem e reprodução das mesmas coisas que eram feitas há 40 ou 50 anos. A ópera tem que ter esta plasticidade de nos transportar para o futuro, se quer sobreviver e não ser só uma peça de museu. Normalmente as peças de museu ficam encerradas em casas para as pessoas irem lá ver e a ópera não é uma peça de museu, não deve ser uma peça de museu.
Há também uma linha de encenação que pensa que é muito evoluída e que pensa que faz uma desconstrução do clássico. Mas isso também já foi feito nos anos 60 e 70… Portanto também já é uma repetição. A desconstrução como inovação também já é peça de museu, porque isso já se fez há 30 ou 40 anos.
Agora precisa-se é de uma renovação do estilo sob uma forma real para as pessoas, introduzindo novos conceitos, senão a ópera como estilo ficará encerrada num museu. Evidentemente que também podemos continuar com as temporadas de produções clássicas, mas a arte não pode puxar para trás a evolução das sociedades, tem é que puxar para a frente essa evolução.