Vila Franca de Xira morreu, ou morreu quem lá vive?

Ana Paes
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Cidade fantasma.

Este é só um dos muitos comentários que têm surgido sobre Vila Franca de Xira. E, de facto, Vila Franca está muito diferente da Vila Franca de outros tempos, onde o comboio transportava dezenas de pessoas até à vila, onde os certames aconteciam, as festas chamavam e o comércio era apelativo. Muito diferente dos dias de hoje. E de quem é a culpa? De todos nós.

É verdade que uma política de descentralização, de cortes na cultura, de pouco ou nulo investimento local, foi fatal para a nossa cidade, mas a falta de participação dos vila-franquenses nas diferentes ofertas culturais que foram surgindo em colectividades e associações, deixando às moscas teatros, colóquios, espectáculos, etc., foram igualmente aniquilando aos poucos  esta cidade ribatejana.

Sim, Vila Franca de Xira parece realmente uma cidade fantasma, mas não só porque as políticas desenvolvidas assim o ditaram, como também porque poucos são os vila-franquenses que saem do conforto do sofá para fazer a diferença. Poucos são os que fazem por mudar as tendências. Os que fazem acontecer. Poucos são os que arriscam assumir a direcção duma colectividade ou associação. Muitos são os que criticam. Demasiados. Culpados? Existem. Claro. Com rosto e bem conhecidos. Mas também os anónimos que se escondem atrás de críticas, de exigências e que nada fizeram para inverter a situação. Nada fizeram para dinamizar a cidade onde vivem.

Se de política falasse, não teria qualquer dificuldade em dar um nome aos tais  rostos dos políticos que foram afogando a nossa cidade, por entre as margens deste nosso rio, também ele pouco aproveitado. Mas falo de cidadania. Solidariedade. Voluntariado. Rostos sem nome. Cidadãos. Homens e mulheres com quem nos cruzamos todos os dias e que, com mais acção e menos críticas, teriam feito toda a diferença na dinamização da nossa cidade.

Há que mudar as políticas. Mudar alguns políticos. Mudar as mentes. As atitudes.

Há sobretudo que agir. Exercer o direito de voto. Associar-se a uma colectividade. Dinamizar uma associação. Voluntariar-se.  Assistir aos espectáculos locais. Comprar no comércio local. Sair à rua para participar, antes de criticar. E se, ainda assim, nada mudar, faça-se ouvir de rosto destapado, cabeça erguida e com a certeza de que tudo fez para fazer acontecer.

Terá Vila Franca morrido, ou morreu também quem por cá vive?


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Ana Paes

"Coração maior, gosta das manhãs. Irrita-se com a incompetência, mas dedica a sua vida a acabar com ela. Tira, dos sorrisos das crianças, a força que a faz levar tudo à frente. Correcta, honesta, franca, de sorriso fácil. Quem a conquista, jamais a perderá." - SUSANA DINIZ Ana Paes é educadora de infância e professora de música. Escreve também aqui: Os filhos dos outros

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One thought on “Vila Franca de Xira morreu, ou morreu quem lá vive?

  • 6 Setembro, 2017 at 9:29
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    A ARENA É UM MUNDO REDONDO E VAZIO
    …onde só existem, S. Jorge ,no eu que sou ali, e o dragão que é o toiro

    Nunca!
    Nunca estive tão perto de deus, Paula, como naqueles momentos!
    Nunca!
    Nem em Vila Franca, no meio do rio, perdendo o cabeço de areia na corrente do Tejo, arrastado e sem consciência de um fim próximo, uma certa calma e já sem vontade de resistir, desistindo da vida sem dar por isso.
    Nem na guerra da Guiné, cercado e sem munições, amigos esburacados de estilhaços e apagando-se como vela de cera no fim do pavio, choro de homens e gritos de raiva, longe da base e com a picada de volta tapada por metralha forte e feia e fogo de morteiro e bazoocka.
    Nem ardendo de febre no cume da malária, a cabeça implodindo, a boca rachando de seca, o corpo falecendo no anúncio do desvario.
    Nem entre Bolama e Bissau, no batelão Anita carregado de sisal e mancarra, gente negra arrebanhada nas margens do rio Cacine em viagem à capital, meia dúzia de soldados em fim de comissão ou de visita ao hospital, um mar que se pôs altíssimo sem sabermos porquê, serras de água vindas em direcção à proa do barco, o soldado Peniche a convencer-nos que era bom gritar “eh mar! eh mar!” de cada vez que aquele caixote trepava o rolo, toda a gente a gritar “eh mar! eh mar!”, os olhos do negro do leme abertos de dúvida e de susto, o casco a descoberto no pico da onda, caindo inteiro e em grande estrondo na água revolta, eu agarrado ao caixote dos pertences, já sem botas para a circunstância do viranço, a gente negra e branca “eh mar! eh mar!”.
    Nem voando sobre Paris, duas horas sem trem de aterragem, passagens a trezentos pés para que os de baixo pudessem inventar uma solução qualquer para aquele trem relutante, a pista tapada de neve carbónica, de carros de fogo, de ambulâncias, de gente correndo sem sentido. Passageiros que me olhavam estranhamente apaziguados com a sorte que pressentiam.
    Nem no voo do ultraleve, sobre a mata de sobro, motor gripado, a descer em direcção às ramas das árvores, em direcção ao nada, ao impacto certo na paisagem que subia violentamente contra um Ikarus moderno e depenado.
    Nem no aeroporto do Maputo, perguntando a guerrilheiro a marca da arma que trazia na mão, encostado à parede por acusação de inimigo e espião de Marcelo Caetano, julgamento sumário, balas nas câmaras de três armas apontadas ao peito, à farda da TAP, gente arrumada ao longe assistindo ao espectáculo, e eu sozinho comigo e com as minhas palavras de comício -anti-colonialista, anti-imperialista, anti-fascista-. E também amigo e camarada, muitas vezes repetindo os sons até ver que as armas baixavam.
    Repito, Paula. Nunca estive tão perto de deus como naqueles momentos, a dez passos curtos da besta, seiscentos quilos de músculos e ossos, chifrando o ar em ameaça terrível.
    Tudo à volta é circular. A praça é um círculo de pesado silêncio. A arena é um mundo redondo e vazio onde só existem o eu que sou ali e o diabo que é o toiro.
    O ar e os sentidos rodam em movimento centrípeto à volta daquele espaço curto entre mim e o dragão, entre o bem e o mal, nas mãos de deuses e demónios, praticamente interpondo meu corpo, apenas, entre o espectáculo e a morte.
    É a teatralidade suprema, Paula, te digo a ti que tanto gostas de teatro! Represento-me a mim mesmo. Sou os três tempos do drama, protagonista, interprete e espectador.
    Sou foco central de Stanilavski, teoria épica de Brecht, vivo e morto possível no minuto seguinte num palco real e trágico.
    Bem sei que não é assim que vês o ruedo, e que só tens o mariavalismo arrivista, a violência do acto de trazer aos olhos a emoção destravada, como povos antigos na loucura da caçada sacrificial, na bebedeira do sangue e da morte.
    Preferes a representação teatral contida no palco da sala, a imitação da morte diária, a espada simulada no ventre do actor, a dor e a esperança jogados na técnica de a jogar para que pareça real o que de facto é, apenas, representação.
    Não digo que não, Paula. Não digo que não e eu próprio nem preciso de me dividir para sair da praça de toiros directamente para uma peça de Shakespeare ou de Garcia Lorca.
    Mas diz-me, Paula, diz-me se souberes dizer-me, dá-me um exemplo de representação teatral, um outro espectáculo, uma outra performance desportiva, ainda que plena, outro jogo em que o jogo sai de si próprio, acto humano, terreno e profano ao mesmo tempo, ainda que em busca de um ideal qualquer, e se transcenda no mais fundo do que o humano pode experimentar, sacralizando o gesto singular e a tragédia colectiva.
    A câmara fotográfica no olho da fera fixa uma figura graciosa. O olho da fera fixa no desenho do corpo o desafio e na e sua memória ancestral chispa o apelo do sangue. O ataque brutal, ou fere apenas o vento que ficou da sua passagem por dentro da nossa ansiedade, ou cobra o tributo pleno da vida.
    De novo te afirmo, Paula, que nunca me senti tão próximo de deus ou de deuses, o que dá no mesmo.
    Deuses, perguntas tu com esse ar de sapiência e razão que eu sei que te desagrada no retrato que de ti gostas de fazer, mas que pões de instinto, sempre que propostas te chegam contra as tuas certezas.
    E o medo, Paula, o medo visceral, tão lógico e tão estranho em humano que enfrenta a morte no infinitésimo segundo do embate?
    E o acto heróico de sobrepor-se ao medo, de passar-lhe por cima e vencer-se a si e em si próprio?
    Não nasci eu em Vila Franca, Paula, apenas na circunstância menor de uns quilómetros na geografia da região.
    Muito perto de Sobral de Monte Agraço, foi, e sabemos, saberás, que também a vila de Sobral vive a toirada como se ribatejana de planície e de toiros fosse, e não estremenha de colinas e de vinhas. E de muitos e fortes ventos, também.
    Nasci no tempo em que ainda os toiros, enquadrados pelas “chocas” e por campinos em seus cavalos, percorriam o caminho a pé por montes e vales, desde o Ribatejo, onde nasciam, até à praça do Sobral, onde, pelo menos simbolicamente, morriam em Setembro.
    Caminhavam de dia por itinerários de pouca gente, dormiam as noites nas matas pequenas que por ali havia, fugiam alguns, inevitavelmente, matando burras e donos de burras.
    As histórias que se contavam desses toiros!
    Os aldeões falavam do “cochicho”, toiro astuto e feroz, escondido pelos taludes e aparecendo de supetão, baldeando gente à cornada pelas arribas, deixando animais esventrados.
    Botei corpo por ali, ouvindo tais histórias e colocando na mesma mitificada prateleira a toiros e toureiros, a campinos e cavalos.
    Um mundo onde a vida e a morte se tornavam fábula trágica e heróica.
    Um toiro quase deus, ou pelo menos a outra sua metade que dizem ser dele, demónio, diabo, camafeu… pelo poder que tem sobre a morte.
    A rebeldia cresceu comigo e acompanhou os trambolhões que dei na vida sem remédio dos puxões de orelha, da lambada e dos riscos.
    Em Vila Franca é que cresci a sério nos anos em que lá vivi, trabalhando, estudando, vivendo por dentro a fama de Redol e na sombra de Soeiro; fazendo remo nesse Tejo também sacralizado por glórias e tragédias, por abundâncias, cheias e naufrágios.
    Era quase inevitável, vindo de onde vinha, caí também nos cornos dos toiros.
    Fui forcado do Grupo.
    E é isso que não me perdoas, Paula, e por isso te jogas toda nessa repulsa que te mina o ânimo, de, uma vez mais, ter acreditado em homem, de ter com ele partilhado sentidos, de o teres desejado e tido.
    Não entendeste, não entendes ainda nem sei se irás entender alguma vez, a contradição apenas aparente. A chamada cultura com suas praxis, seus ideais, suas formas, suas acabadas certezas, no convívio com a literatura, as conferências, o teatro, gente “culta” e politizada, e no outro lado, o que apenas vias, senhoritos a macaquearem marqueses antigos em seus cavalinhos, a teima no prolongamento de uns restos de feudalismo absolutista, “os fanfarrões”, os tradicionalistas que teimavam no encosto a um regime conservador e violento, prolongamento possível de um rei absoluto que desejavam, a gratuitidade do gesto e do risco.
    A toirada!
    Nem te passava pela cabeça a hipótese de outras abordagens no entendimento sobre o nevoeiro do tempo do homem.
    Dizes tu da corrida de toiros, mesmo que à portuguesa, menos sacrificial, menos ritual do que a espanhola, dizes tu que é anacrónica e selvagem.
    E nisso pões toda a tua segurança, toda a certeza com que atravessas os lugares e as gentes com quem te cruzas.
    E eu digo, Paula, eu digo o que te disse antes e não repito agora, mas reforço, apenas perguntando se sabes das pedras movidas/das marcas de sangue/e ânsias/deixadas nas pedras/para se pôr/assim/um homem erecto/diante da besta. Pergunto se sabes dos deuses / fantasmas / dos dragões inventados/no correr dos tempos/para se pôr /agora/um homem inteiro/diante da morte.
    Em processo de crescimento, sabia eu muito pouco sobre a plural, complexa e universal ânsia do homem pela felicidade.
    E gostava, não sabendo porquê, de me pôr em frente do toiro, de chamá-lo, de provocá-lo, de aguentar a investida, escolhendo os tempos e os lugares para o momento do êxtase.
    Estava vencida a besta. Fora de mim e dentro de mim, suponho hoje, e também dentro de toda aquela gente que de respiração suspensa, se irmanava no acto.
    E isto te digo, Paula, ainda que julgue que serão palavras deitadas ao chão porque não o entendas nem venhas a entender nunca.
    …………………………………………………………………………………………………………….
    In “Lugares de Passagem”
    José Brás

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